Da redução dos gargalos do diagnóstico no SUS ao processo de aprendizado amparado por inteligência artificial, as pessoas diagnosticadas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) podem ter na IA uma aliada.
Ao menos foi esse o objetivo que levou o jornalista Francisco Paiva e o neurocientista Alysson Muotri a criarem um chatbot capaz de atender as demandas dos filhos diagnosticados com autismo.
Paiva conta que os primeiros protótipos do que viria a ser o Genioo foram testados pelo próprio filho, Giovani, diagnosticado com TEA nível 1 de suporte. Giovani tem algumas dificuldade de perceber o que fez de errado numa interação social, como quando um amigo o bloqueia no WhatsApp e ele não entende “onde errou”.
Na prática, a IA explica situações sociais com linguagem coerente com a idade, além de trazer analogias e linguagem didática para situações cotidianas. Segundo Paiva, isso permite que Giovanni tenha um plataforma segura sem depender do horário da terapia ou da disponibilidade do pai.
“Eu quero ajudar o Giovani, mas eu também quero ajudar outros autistas e além disso, ajudar a sociedade reflete no Giovani, né? Então, por conta disso, atismo nasceu pensando em atender a esse propósito.”
O processo de treinamento do Genioo perpassou por várias etapas desde 2018, sendo gradativamente adaptada ao conceito de saúde digital. Nesse processo, a prevenção ao suicídio foi um dos principais tópicos trabalhados pela equipe da Tismoo.
“Autistas tentam suicídio quatro vezes mais que a população em geral, eles são hospitalizados por causa dessas tentativas seis vezes mais que a população em geral e morrem oito vezes mais que a população em geral por suicídio.”
O autismo se tornou um propósito de vida e de negócio, que “dá gás” e motivação para toda a equipe da Tismoo, que conta com dois sócios investidores com uma filha com síndrome de Rett. O Grupo Tismoo surgiu em 2015, em que primeiro projeto foi o Autismo Biotec, um laboratório de exames genéticos para autismo.
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Na prática, a Tismoo tinha surgido como uma rede social, porém, foi pivotada para um negócio complementar à saúde digital. Com foco em pessoas com TEA e outras neurodivergências, a Tismoo oferece serviços para empresas e clínicas especializadas, atendendo mais de 500 famílias por meio de 10 players, sobretudo, na região de Recife.
Dados do Censo 2022 apontam que 2,4 milhões de brasileiros declararam ter recebido o diagnóstico, o equivalente a 1,2% da população. Nos Estados Unidos, a proporção é de que uma em cada 30 crianças seja diagnosticada com TEA, o que corresponderia a mais de 3% dos norte-americanos.
IA para diagnosticar TEA
Atualmente, o SUS conta com cerca de 45 mil equipes de saúde da família, sendo que cada uma delas é responsável por atender aproximadamente 3,5 mil pessoas. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, esse gargalo impede que o diagnóstico seja feito ainda na infância, momento chave para definir estratégias de acompanhamento.
“O médico de família tem 15 minutos para ver a parte da alimentação, evacuação, sono, telas, vacinação e aí o desenvolvimento e atividades físicas. Além disso, na maioria das vezes, quando a criança aparece na consulta, ela está doente. Nossa triagem inicial é uma triagem escassa”, explica Mariana Mercadante, doutora em pediatria e pesquisadora do centro de desenvolvimento infantil na faculdade de medicina da USP.
Com um investimento de R$ 800 mil, o projeto conduzido pela professora da USP Fátima Nunes (EACH) e pelo professor André de Carvalho (ICMC) tenta reduzir esses gargalos. Ainda em fase de testes, o programa de inteligência artificial consegue dimensionar e medir as características do rosto da pessoa a partir de uma foto lida pelo sistema. Um modelo semelhante a um aplicativo de reconhecimento facial bancário.
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Em um primeiro ensaio clínico com 200 participantes de um grupo controle — em que 100 já eram diagnosticados com autismo e 100 eram considerados com desenvolvimento típico — foi possível registrar uma assertividade de 90%. Porém, ao aumentar o grupo controle, a taxa de sucesso tem variado entre 70% e 80%.
“Nossa amostra é muito variável, o brasileiro é muito misturado. Seria mais fácil reproduzir a taxa de 90% se tivéssemos uma população com características morfológicas mais homogêneas. Na hora que pegamos uma amostra maior, nosso desempenho cai”, conta Fátima Nunes, coordenadora do projeto.
Diferentemente de outras síndromes, o TEA não apresenta características fisiológicas tão perceptíveis a olho nu. Por isso, a USP tem desenvolvido um sistema que mede certos traços faciais, como cantos dos olhos e do nariz. Além da morfologia facial, o sistema também faz o rastreamento dos pontos focais a partir do olhar.
“O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento que, quando o cérebro está se formando, reflete na morfologia da face. [Antigamente] eles pegavam uma fita métrica e iam passando no 3D da face, era assim que tinham esses resultados. Construímos vídeos em que mostramos cenas em que a probabilidade de o autista olhar é maior e ficamos observando para onde a pessoa olha”, explica.
Com o investimento da Fapesp, a meta é aumentar para 600 participantes e, assim, melhorar a base de dados. O programa de financiamento vai até 2027, quando os pesquisadores pretendem publicar artigos científicos com os resultados. O programa está em desenvolvimento há 10 anos em parceria com o Programa de Transtornos do Espectro Autista do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP
“Uma das contribuições do projeto vai ser uma dataset [base de dados] certificada, com diagnósticos de profissional de saúde dizendo que aquele grupo é portador do transtorno e este aqui tem desenvolvimento típico.”
O que é TEA?
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado por déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, associados a padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades.
Esses sintomas devem estar presentes desde o início do desenvolvimento, ainda que possam se manifestar plenamente apenas quando as demandas sociais excedem as capacidades da criança, e precisam causar prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida.
“As pessoas com TEA sentem o mundo de forma diferente e, por isso, respondem ao mundo de forma diferente. Elas têm uma percepção social e uma inserção social que não é típica, que não é o que a sociedade espera”, explica Mariana.
A 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da American Psychiatric Association, determina que uma pessoa precisa atender, ao menos, cinco critérios para ser diagnosticada com TEA. Desses cinco, três devem pertencer ao grupo A e, pelo menos, dois ao grupo B.
A. Déficits persistentes na comunicação e interação social, incluindo:
- Déficits na reciprocidade socioemocional (ex.: dificuldade em manter uma conversa ou compartilhar emoções).
- Déficits em comportamentos comunicativos não verbais usados na interação social (ex.: contato visual, gestos, expressões faciais).
- Dificuldades em desenvolver, manter e compreender relacionamentos (ex.: ausência de interesse por pares ou dificuldade em ajustar o comportamento a diferentes contextos sociais).
B. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, manifestados por pelo menos dois dos seguintes:
- Movimentos, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos.
- Insistência em mesmice, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento.
- Interesses altamente restritos e fixos, anormais em intensidade ou foco.
- Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente.
