Em entrevista ao primeiro episódio do videocast EM3ATOS, da TMC, o ex-delegado Hélio Luz, 80 anos, ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, afirmou que a polícia brasileira nasceu para proteger o Estado e a elite, não a sociedade, e classificou a atual crise de segurança como resultado direto de um país “montado para manter privilégios” e conter 80% da população pobre.
De D. João VI às operações de “contenção”
Hélio Luz resgata a origem da polícia no Brasil, apontando para 1808, quando D. João VI cria a polícia civil no Rio para controlar a população escravizada e garantir a circulação tranquila da corte. Segundo ele, um ano depois surge o embrião da polícia militar, já com farda, para ampliar essa “contenção”. Na visão do ex-chefe, essa lógica nunca mudou: a polícia continua sendo o braço armado que mantém 20% privilegiados protegidos e 80% excluídos sob controle.
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Ao comentar operações recentes em favelas do Rio, como no Complexo do Alemão e na Penha, Luz diz que o nome “Operação Contenção” é literal: serviria para conter os pobres, não só o tráfico. Para ele, a maioria dos jovens mortos nessas ações é fruto direto da desigualdade extrema, de um mercado de trabalho que empurra parte da população para o crime como “tudo ou nada”. Ainda assim, admite que, enquanto a estrutura de distribuição de renda não mudar, o Estado vai continuar recorrendo a operações violentas para segurar as periferias longe dos bairros ricos.
Estado como “crime organizado” e CPI que decreta falência
Quando o assunto é crime organizado, Hélio Luz inverte o senso comum. Facções e tráfico de drogas, para ele, são “aglomerados vulneráveis”; o verdadeiro crime organizado é o próprio Estado brasileiro, montado desde o Império para desviar recursos públicos e blindar uma minoria. Ele cita a corrupção estrutural, o “país do acerto” e a incapacidade de garantir direitos básicos como saúde, moradia e educação como prova de que a máquina pública funciona prioritariamente para manter privilégios.
Nesse contexto, a CPI do narcotráfico em Brasília vira, nas palavras dele, um “teatro” que só escancara a falência do Estado. Ao propor convocar chefes de facções como Marcola, o Congresso, segundo Luz, reconhece que não consegue controlar o sistema prisional nem as armas que chegam às favelas. Ele afirma que, se prisão fosse solução, o Brasil — com uma das maiores populações carcerárias do mundo — já teria resolvido o problema da violência há muito tempo.
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Lava Jato, Marcelo Odebrecht e a chance perdida de mexer na elite
Hélio Luz também revisita a Operação Lava Jato e a prisão do empresário Marcelo Odebrecht. Apesar de criticar abusos e ilegalidades do então juiz Sergio Moro, ele diz que ver um grande empreiteiro cumprir cerca de dois anos de cadeia foi o momento mais próximo de se mexer, de fato, no topo da pirâmide econômica. Para o ex-delegado, quando a investigação encostou em quem estruturava a corrupção em alto nível, o sistema reagiu e “anulou” o processo, devolvendo dinheiro e credibilidade aos mesmos atores de sempre.
Para ele, a desigualdade só começaria a cair se figuras centrais da elite econômica passassem a ter medo de perder patrimônio e liberdade. Enquanto isso não acontece, Luz avalia que as prisões se concentram nos mesmos alvos de sempre: jovens pobres, pretos, periféricos, usados como massa descartável de um modelo que mantém intocados os grandes beneficiários do esquema.
Reforma do Estado antes de “consertar” a polícia
Questionado sobre o que fazer com a segurança pública, Hélio Luz é categórico: não há como consertar a polícia sem antes reformar o Estado. Ele diz que é ilusório acreditar em “polícia cidadã” se a própria estrutura estatal não garante cidadania a quem não tem acesso a direitos básicos. Na prática, a função central da polícia, segundo ele, segue sendo manter uma sociedade injusta funcionando, reprimindo revoltas e administrando a violência dentro das favelas para que ela não transborde para os bairros de elite.
Apesar do tom duro, Hélio Luz não diz ter perdido a esperança. Ele aponta o voto e a renovação das próximas legislaturas como única saída possível, ainda que lenta, para reduzir a captura do Estado por grupos de interesse. Até lá, o ex-delegado acredita que o país continuará vivendo “de fachada”, com CPIs, leis e operações espetaculosas que, no fim, preservam o mesmo jogo de privilégios de sempre.
