A ideia de censura líquida parte de um conceito já conhecido na sociologia contemporânea. O termo “líquido” remete ao pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, amplamente associado às noções de sociedade líquida, amor líquido e relações sociais sem forma estável. A metáfora da liquidez descreve uma realidade que não é sólida, não é fixa, espalha-se e se adapta como a água. É a partir desse referencial que se pode compreender o fenômeno da censura líquida no Brasil.
A censura líquida é um processo por meio do qual pessoas que escrevem, falam ou gravam conteúdos passam a correr riscos constantes. Esses riscos não se apresentam de maneira previsível ou centralizada. Diferentemente das discussões mais comuns sobre censura, que costumam se concentrar em decisões do Supremo Tribunal Federal ou em disputas político-partidárias, a censura líquida opera de forma mais horizontal e difusa.
Não se trata aqui da narrativa recorrente que envolve acusações de figuras ligadas ao bolsonarismo contra o STF, como alegações de retirada do direito de fala, bloqueio de contas bancárias ou interferências diretas motivadas por disputas ideológicas. O fenômeno descrito é outro. Ele não se limita a instituições específicas nem se estrutura a partir de um eixo claramente identificável. A censura é chamada de líquida justamente porque não tem forma definida e pode surgir de qualquer lugar.
No contexto brasileiro, ao expressar determinada opinião ou ao abordar um tema específico, uma pessoa pode, a qualquer momento, ser alvo de reação por parte de uma associação profissional, de um grupo de bairro, de um grupo étnico, de torcedores de um time ou de qualquer outro agrupamento organizado. Esses grupos podem interpretar determinada fala ou texto como a prática de algum tipo de crime enquadrado no campo dos direitos humanos. A partir dessa interpretação, ocorre a denúncia, e o Ministério Público passa a investigar.
Em muitos casos, há inicialmente a possibilidade de defesa, e nem todas as investigações avançam para um processo formal. Ainda assim, o simples fato de uma denúncia existir já produz efeitos concretos. A necessidade de contratar um advogado, geralmente caro, impõe um custo imediato. Esse custo, por si só, funciona como um fator de contenção. Antes mesmo de qualquer condenação ou decisão judicial, a pessoa já passa a pensar duas ou três vezes antes de discutir determinados assuntos ou de fazer críticas mais duras a certos grupos.
A censura líquida não depende necessariamente da abertura de um processo judicial que chegue até o fim. Muitas vezes, ela se manifesta como uma ameaça de processo. Essa ameaça já implica despesas, desgaste e insegurança. O impacto financeiro de ter que se defender, mesmo quando não há condenação, é suficiente para produzir um efeito de silenciamento. Evitar o risco passa a ser uma estratégia de autopreservação.
Há quem entenda esse tipo de prática como uma forma de “cala-boca”. Não se trata, nesse caso, de um interesse real em levar adiante uma ação judicial até suas últimas consequências, mas de gerar medo. O objetivo seria fazer com que determinadas pessoas deixem de abordar temas considerados sensíveis por grupos poderosos de interesse. Uma vez instaurado esse temor, o silêncio passa a funcionar como prevenção.
Esse mecanismo não está diretamente ligado a partidos políticos, eleições ou alinhamentos ideológicos tradicionais. Não se confunde com a polarização política que costuma dominar o debate público. A censura líquida se relaciona com o risco permanente de ferir a sensibilidade de algum grupo organizado, que pode surgir de forma inesperada e direcionar ações contra quem falou ou escreveu.
O custo financeiro envolvido nesse tipo de situação é um elemento central. Mesmo sem condenação, a pessoa já sofreu uma punição prática ao ter que gastar recursos para se defender. Esse efeito antecede qualquer decisão judicial e atua como um freio ao debate público.
Ao imaginar um profissional jornalista que transita pela imprensa ou pela mídia em geral, esse cenário ganha contornos ainda mais claros. Diante da possibilidade de ser alvo da censura líquida, esse profissional tende a evitar críticas a grupos poderosos que tenham capacidade de acionar esse tipo de mecanismo. O resultado é a retração do discurso e a limitação do espaço de discussão, não por uma proibição formal, mas pelo risco difuso que se impõe de maneira constante.
