Há uma passagem conhecida do Evangelho em que uma mulher, acusada de adultério, é levada para ser apedrejada. A cena, frequentemente retratada pelo cinema, costuma ser associada de forma equivocada a Maria Madalena. No episódio, Jesus afirma que aquele que estiver livre de pecado atire a primeira pedra. As pedras caem no chão e as pessoas se dispersam. A leitura feita a partir dessa narrativa aponta que, naquele contexto, ninguém se considerava livre de pecado. A comparação com o presente sugere um contraste: hoje, haveria maior disposição para o apedrejamento, pois muitos se veem como santos, sem reconhecer falhas próprias. Esse comportamento se manifesta na prática de sinalização de virtude nas redes e na persistência do impulso coletivo de linchar, xingar e atacar.
A observação leva a uma constatação: nesse aspecto, pouco mudou. A disposição humana para o julgamento público permanece, e a tecnologia amplia sua visibilidade. A partir desse ponto, a análise retorna ao tema do comportamento político. Na ciência política, há o que se chama de lendas da democracia: ideias difundidas que não se confirmam quando confrontadas com pesquisas empíricas sobre como as pessoas se comportam ao votar.
Uma dessas lendas é a de que a maioria dos eleitores pesquisa de forma consistente antes de escolher seu candidato. Em entrevistas de rua, diante de um microfone ou de uma câmera, a resposta comum é a afirmação de que há pesquisa e informação prévias. As evidências indicam que isso não ocorre na imensa maioria dos casos. A rotina das pessoas envolve casar, separar, enfrentar perdas, lidar com inventários, trocar de celular. Nesse contexto, a decisão do voto tende a ser tomada na última hora ou guiada por simpatia ideológica, sem aprofundamento.
Há ainda um dado revelador: as pessoas costumam dedicar mais atenção à escolha de um celular do que à decisão do voto. A razão apresentada é simples. A compra de um aparelho tem impacto direto e imediato sobre quem decide. Já o voto é percebido como um entre milhões. A sensação é a de que um voto isolado não altera o resultado final, a menos que se considere uma escala ampla, algo que a maioria não faz.
Outras lendas também são mencionadas, como a ideia de que quem estudou mais vota melhor. Não há consenso sobre o que seria votar melhor. Em geral, a expressão significa votar no mesmo candidato de quem faz a afirmação. A ciência política avançou ao desmontar esses mitos sobre o comportamento do eleitorado, sem entrar, nesse momento, na análise do comportamento dos políticos.
A discussão avança para a realidade brasileira e a chamada bipolaridade eleitoral. Como explicar a eleição de um presidente do PT ao mesmo tempo em que se forma um Congresso de maioria à direita? A análise começa pela diferença entre os critérios eleitorais: o número de votos necessário para eleger um presidente não é o mesmo para eleger representantes do Legislativo.
Na eleição de 2022, a diferença de votos entre Lula e Bolsonaro foi pequena, fenômeno observado em outros países. Essa margem estreita não significa que a maioria do eleitorado tenha optado por candidatos de esquerda para o Legislativo. É comum, em diversos sistemas, a coexistência de um Executivo de um partido e um Legislativo de outro.
Essa configuração tem efeitos distintos. Pode ser negativa em um sistema marcado por corrupção, no qual representantes do Executivo e do Legislativo tratam o Estado como propriedade e utilizam suas ferramentas em benefício próprio. Por outro lado, também reforça a separação de poderes e cria mecanismos de freios e contrapesos, forçando negociações entre as esferas. O problema surge quando essas negociações são conduzidas por práticas percebidas como corrompidas.
No caso específico de 2022, ficou evidente que parte do eleitorado que não votaria no PT ou em Lula decidiu não apoiar Bolsonaro, avaliando negativamente seu governo, especialmente em razão da pandemia. Ainda assim, essas mesmas pessoas optaram por um Legislativo mais conservador e menos alinhado ao PT.
Esse resultado é apresentado como expressão da democracia. A noção de bipolaridade é relativizada pela ideia de que a humanidade opera, em muitos aspectos, de forma bipolar. A expectativa de decisões políticas estritamente racionais, como imaginaram pensadores iluministas do século XVIII, perde espaço para análises que incorporam paixão, irracionalidade e espontaneidade. As redes sociais intensificam esse processo ao funcionarem como um espaço de concentração dessas paixões.
