O que agora está sob os famosos suzurantos, aquelas típicas luminárias japonesas que enfeitam o bairro da Liberdade, já foi um território marcado pela dor de escravizados entre os séculos XVIII e XIX. Antes da influência nipônica, a região abrigava negros escravizados e espaços dedicados a torturas e até enforcamentos.
“A circulação por ali era de dois grupos muito distintos: esse grupo que produzia a repressão e esse grupo que era reprimido. Então, a gente está falando, principalmente, de pessoas racializadas, em sua maioria, pessoas negras, mas também pessoas indígenas, miscigenadas”, descreveu a historiadora Carolina Oliveira.
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No contexto do feriado nacional do Dia da Consciência Negra, a TMC foi à Liberdade para mostrar três pontos do bairro que fazem parte da história e da resistência negra de São Paulo.
O primeiro ponto é a Praça da Liberdade, antes conhecida como Largo da Forca, justamente porque era nesse local que condenados à morte, sobretudo negros escravizados, eram enforcados.
Mas e os corpos dos enforcados? Qual era o destino deles? A resposta nos leva ao segundo endereço, a Capela dos Aflitos, localizada na Rua dos Aflitos, construída sobre e Cemitério dos Aflitos, onde eram enterrados os corpos dos enforcados, de escravizados, de indígenas e de indigentes, ao contrário das elites que tinham túmulos garantidos nas igrejas.
E é justamente uma igreja que compõe esse roteiro da história negra na Liberdade. Trata-se da Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados, localizada na Praça da Liberdade. O templo, inclusive, dá pistas sobre a origem do nome do bairro.
Caso Chaguinhas
A principal teoria é a de que o bairro Liberdade recebeu esse nome por causa do enforcamento do cabo negro Francisco José das Chagas, mais conhecido como Chaguinhas, condenado à morte por liderar um motim contra atrasos no pagamento de salários em Santos.
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Quando era preparado para a execução, a corda que o prendia à forca arrebentou três vezes. Surpreendidos, populares começaram a gritar “Liberdade, liberdade, liberdade!”. Ainda assim, nem o clamor do povo, nem o acaso foram suficientes para impedir a morte de Chaguinhas.
O local onde Chaguinhas morreu virou ponto de peregrinação e, tempos depois, passou a abrigar a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados.
Para o coordenador-geral do Museu dos Aflitos, Lucas Almeida, é preciso rever os conceitos que definiam criminosos, à época, visto que os alvos das condenações eram, sistematicamente, pessoas negras e indígenas.
“Por muito tempo, se levantou essa discussão de que tanto a forca como o cemitério enterraram, sepultaram, e a forca executou, ‘criminosos’, africanos, indígenas, mas o que pode ser considerado crime num contexto de crimes contra a humanidade? A própria figura de Francisco José das Chagas foi entendida como a de um criminoso. É necessário que a gente sempre faça esse recorte da forca, do pelourinho, da Casa de Câmara e Cadeia”, ponderou Almeida.
5 milhões de negros em SP
Em números absolutos, São Paulo abriga a maior população negra do país, com cerca de 5 milhões de pessoas que fazem parte desse grupo, segundo o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar do quantitativo expressivo, coletivos lamentam o que chamam de apagamento da história negra na cidade.
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Em entrevista, a antropóloga Raissa Albano reconheceu o processo de apagamento da memória negra em São Paulo, mas destaca a atuação de grupos que resgatam essas narrativas. A própria fundou a Cartografia Negra, um coletivo que pesquisa e faz curadoria dessas histórias perdidas no Centro de São Paulo.
“Eu acho que existe um processo massivo de apagamento dessa memória, mas eu não posso falar das diversas movimentações dos movimentos negros, de tantos professores, professoras, de tantos intelectuais que estão pensando a cidade, a partir das narrativas dos povos negros, dos povos marginalizados, dos povos pobres, dos povos originários”, salientou Albano.
Liberdade seria “Little Tokyo”
Com a desativação do Cemitério dos Aflitos, em 1858, a Liberdade começou a receber intervenções urbanas. Só a partir de 1970, a região ganhou a estética oriental que conhecemos hoje. O objetivo era se tornar uma Little Tokyo, ao estilo Chinatown dos Estados Unidos.
