É seguro dizer que a história da influência cultural da África no mundo é, também, a história da cultura do mundo em si; afinal, o continente não recebeu o apelido de “Berço da Humanidade” à toa. Os primeiros povos se formaram por lá, em meio à natureza abundante da Pré-História, e também foi lá que os seres humanos deram seus primeiros passos tecnológicos: o fogo, a roda, a fala, a escrita.
Apesar disso, seja por descuido ou por razões mais nefastas, há um apagamento que perdura até os dias de hoje com relação ao que a Mãe África nos trouxe. Ritos, costumes, ditados, ritmos… fragmentos da sabedoria dos povos africanos que usamos até hoje, muitas vezes sem nem saber de onde vieram; ou da história por trás da popularização deles.
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O IBGE, na publicação “Brasil: 500 anos de povoamento” (2000), dedica todo um capítulo para abordar esse tema – “a herança cultural negra e racismo” – com as nuances e o cuidado histórico que merece. Afinal, mesmo se falarmos apenas de Brasil, não podemos dizer que o entrelace da cultura africana com o que viria a ser “nossa” cultura aconteceu por livre e espontânea vontade, ou mesmo totalmente por boas intenções.
Escravidão e cultura
É preciso entender, antes de mais nada, que os povos brasileiros em sua origem eram os que hoje chamamos de indígenas. O Brasil não “nasceu” um país de caucasianos ou de africanos: os primeiros vieram para cá para conquistar território e expandir o império europeu, e os segundos vieram como mercadoria para trabalho escravo.
Os portugueses primeiro escravizaram os povos nativos do Brasil, na década de 1530, para atender a necessidade de Portugal por mão de obra na lavoura. A partir do século XVI, foi começando uma substituição gradual dos indígenas pelos povos africanos que vieram do Golfo de Benin, região do litoral da Costa do Marfim até a Nigéria.
Os africanos eram trazidos para o Brasil por meio do tráfico negreiro: isto é, eles eram comprados na África como mercadorias, sem o básico de qualquer tratamento como ser humano, e trazidos via navio de carga para o país que o comprou.
Essa convivência, ainda que forçada, entre três povos e culturas diferentes resultou em uma variedade de subculturas derivadas dessas matrizes. Por ser um país vasto e com muita diversidade ambiental, essas novas culturas também se viram afetadas pela economia, pelo clima e pelas fronteiras que dividiam, eventualmente se tornando algo completamente novo.
Religiões e ritos
Quando os escravos vinham para o Brasil, eram obrigados a seguir o catolicismo; muitos deles, porém, já tinham suas próprias crenças nos seus países de origem, e os mais devotos ou não conseguiam ou não queriam abrir mão da sua fé. Seja em espaços afastados, florestas cobertas ou quilombos, os ritos e costumes das religiões de origem africana ainda eram secretamente praticados em solo brasileiro.
A disseminação dessas tradições não aconteceu de forma descarada; afinal, na chamada Era Colonial, a prática de outras religiões era popularmente reprovada (“coisa do diabo“), e no Brasil Império, o ato de praticar ritos “fora do padrão” já era tido como desordem pública. Por isso, muito do intercâmbio cultural nasceu nas margens da sociedade, longe dos olhos do Império.
A semelhança entre rituais, entre o sentido da fé e a crença em símbolos levou pessoas de diferentes backgrounds a encontrar lugares comuns entre suas religiões, o que permitiu e deu origem a novas religiões já mais contextualizadas no cenário do Brasil.
Dos grupos Iorubá e Jeje no Nordeste, por exemplo, nasceu o Candomblé entre os séculos XVI e XIX; no Rio de Janeiro, o médium Zélio Fernandino de Moraes fundou a Umbanda após incorporar o espírito do Caboclo das Sete Encruzilhadas numa sessão espírita.
A real música popular brasileira
Hoje em dia, não existe Brasil sem samba. O carro-chefe musical da nação carrega consigo uma herança cultural de séculos, além de pautar o ritmo do Carnaval, maior evento do país. Mas quem trouxe o samba pra cá, onde ele se desenvolveu até virar o que é hoje, foram os escravos africanos.
O primeiro registro do que se entende por “samba” vem da Bahia, e o nome que hoje é do estilo musical antes servia para definir todo o ritual de canto e dança de grupos de escravos. Mas o ritmo já existia antes; o batuque do tambor dos escravos foi sendo influenciado por ritmos da música europeia até se tornar algo próprio.
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Thiago Souza, Professor de Sociologia, Filosofia e História, afirma no artigo “A História do Samba” que após a dita abolição da escravidão (1888) e da instituição da República (1889), muitos dos escravos libertos se mudaram para o Rio de Janeiro, então capital nacional, em busca de emprego.
Os traços da repressão do período colonial e imperial, porém, perduravam na nova República: manifestações culturais africanas eram malvistas e até condenadas, empurrando os ex-escravos para as margens da sociedade mais uma vez. Assim, eles faziam suas festas entre si, em casas de matriarcas afrodescendentes que acobertavam os sambas. Com o tempo, o som foi encontrando os círculos da alta elite social e virou o “ritmo brasileiro“.
Sabedoria popular africana: ditados que você nem sabia que vieram de lá
A herança cultural de um povo não é apenas feita das grandes obras, nomes e conceitos; ela também é reforçada e disseminada pela vivência em sociedade, pelos chavões e bordões, pelas superstições, e pelo que se chama de “sabedoria popular“.
Muitos ditados populares, por exemplo, vieram da África, mas muita gente sequer faz ideia disso, não por descaso, mas, simplesmente, porque a cultura africana ainda carrega injustamente a má reputação que lhe foi imputada nos séculos passados. Por isso, ela ou é ignorada, ou é gentrificada e passada adiante como se não fosse africana de origem.
Veja agora alguns ditados populares que nasceram no Berço da Humanidade:
“Se quiser ir rápido, vá sozinho. Se quiser ir longe, vá acompanhado“
Usado muito em frases motivacionais e discursos corporativos, a origem dessa frase não é exatamente conhecida, mas é frequentemente citada como sendo um provérbio queniano ou ganês.
“A maré calma não faz marinheiros habilidosos“
A frase, que prevalece até hoje na cultura popular e na ficção, já foi atribuída à filosofia grega, ao presidente Roosevelt (EUA), e foi tida como sabedoria cultural de marinheiros. Mas, na verdade, ela aparece pela primeira vez na literatura oral da África Ocidental.
“Não importa se a noite é longa, pois o dia sempre vem“
Há diversas reinterpretações e maneiras de escrever a frase acima, que já foi usada até mesmo nos anos 1990 por Tupac Shakur. Sua origem vem das tradições de povos da África Oriental, passando uma mensagem de esperança e paciência.
“Quem não chora, não mama“
O provérbio original, de origem do povo Iorubá, se aproxima mais de “A criança que chora primeiro chega primeiro ao peito da mãe”, cujos significados são similares, mas não iguais.
“O inimigo no mundo não pode te machucar se não há inimigos em você“
O provérbio acima, de origens pan-africanas, se assemelha muito a um trecho da Bíblia: “porque aquele que está em vocês é maior do que aquele que está no mundo (1 João 4:4)”.
