Uma pesquisa inédita realizada pelo Data Favela (15/08 a 20/09) ouviu 3.954 pessoas que atuam diretamente no tráfico de drogas em 23 estados e traçou o retrato mais completo já produzido sobre quem entra no crime, por quê, como vive e o que deseja para o futuro. Os dados desmontam mitos, revelam a força das mulheres e mostram que a maioria quer sair, mas não consegue por motivos econômicos.
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Família, origem e o mito da “desestruturação”
Metade dos entrevistados é jovem, 74% são negros e 80% nasceram e cresceram na favela. O estudo derruba a ideia de “família desestruturada”: 35% dos entrevistados foram criados em famílias tradicionais e 38% em famílias monoparentais, 79% dessas lideradas pelas mães. Além disso, 84% afirmam que não deixariam um filho entrar para o crime, revelando vínculos fortes e desejo de romper o ciclo de violência.
Educação, sonhos interrompidos e carreiras perdidas
Apesar da baixa escolaridade (42% não concluíram o fundamental) 55% gostavam de ir à escola, especialmente por aprender coisas novas e pela presença das professoras. Quando perguntados “o que fariam diferente?”, 41% responderam que teriam estudado mais. E, em um dado surpreendente, o curso mais desejado é Direito (18%), seguido por Administração, Medicina e Engenharia.
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Saúde mental, rotina exausta e consumo de drogas
A vida no crime tem um custo físico e psicológico alto: 39% sofrem de insônia, 33% têm ansiedade e 19% relatam depressão. Muitos dormem apenas de duas a quatro horas por dia e 63% fazem uso habitual de drogas, especialmente maconha e cocaína. Como 89% não têm plano de saúde, a sobrevivência depende exclusivamente do SUS, enquanto o ritmo imposto pela atividade desgasta o corpo e amplifica traumas. Quando perguntados sobre sua alimentação, 62% dos entrevistados afirmaram se alimentar com comida caseira. Este dado parece indicar, em cruzamento com outros dados (com quem mora), que a maioria dos entrevistados faz as refeições em casa (seja na sua casa ou na casa dos pais).
Como funciona o crime: cargos, renda e permanência
A maioria atua como vapores, soldados ou olheiros — cargos ocupados, em geral, pelos mais jovens. Há ainda gerentes, frentes e donos da boca. Mesmo assim, 63% ganham até dois salários mínimos, valor menor do que o imaginado pelo senso comum. A falta de dinheiro também aparece como principal motivo de entrada no crime, reforçando que a decisão é, antes de tudo, econômica e não glamurizada.
A falta de uma situação econômica mais favorável é também o motivo declarado pelos entrevistados para a entrada no crime. “Exatamente porque recebem pouco dinheiro, essas pessoas entram, por necessidade econômica, acreditando que aquele dinheiro vai ser suficiente para uma vida melhor, e logo descobrem que não é bem assim”, afirmou o diretor técnico do Data Favela.
O estudo mostra ainda que muitos buscam atividades paralelas para complementar renda: 36% disseram exercer outra ocupação remunerada, evidenciando os baixos ganhos ilegais. “42% fazem bicos, uma atividade esporádica e, quase sempre, mal remunerada”, explicou. Além disso, 24% empreendem com pequenos negócios, como barraquinhas de comida ou oficinas mecânicas; 16% mantêm emprego formal; 14% ajudam em empreendimentos de amigos; e 3% atuam em projetos sociais.
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Encarceramento e a fronteira entre favela e prisão
O estudo aponta que 54% já foram presos e 57% têm algum familiar encarcerado. A massa de dados confirma a ideia de que prisão e favela funcionam como sistemas interligados: o tráfico é hoje o crime mais comum nas penitenciárias e a superlotação agrava o ciclo de reincidência.
A saída do crime: desejo existe, oportunidade não
Apesar de tudo, 58% deixariam o crime se tivessem uma chance real, principalmente abrindo um negócio (22%), conseguindo um emprego formal (20%) ou um trabalho com horários flexíveis (15%). O principal impedimento? A economia: 33% dizem que não têm outra fonte de renda e 17% temem não conseguir sustentar a família. Em resumo, a porta de entrada é a mesma que bloqueia a saída.
