Em entrevista ao videocast EM3ATOS, da TMC, a fonoaudióloga Bruna Martinovich conta como uma combinação de síndrome genética rara, lúpus, síndrome de Ehlers-Danlos, imunodeficiência, falência do intestino grosso e uma sequência de erros médicos reorganizou toda a sua existência. Entre internações longas, dores intensas e a convivência diária com a possibilidade real da morte, ela escolheu um caminho improvável: humor, política, afetos, gatos, bolo de caneca vegano de micro-ondas – e a defesa pública do testamento vital e da morte assistida como questão de dignidade.
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Do diagnóstico à vida entre hospitais
Bruna tinha 27 anos quando o destino “se impôs de maneira muito dura”, como lembra o apresentador Rodrigo Alvarez. Uma síndrome genética severa a empurrou para uma rotina de consultórios, enfermarias, exames e cirurgias.
Ela vive hoje com:
- Síndrome de Ehlers-Danlos – que provoca hipermobilidade articular, luxações frequentes e alterações de colágeno;
- Lúpus – gatilhado, segundo ela, por uma grave infecção após um procedimento dentário mal conduzido;
- Síndrome de ativação de mastócitos – em que as células ligadas a processos alérgicos “disparam” sem aviso;
- Imunodeficiência – com linfócitos B muito baixos, responsáveis pela produção de anticorpos;
- Paresia do sistema digestivo – que levou à inércia colônica e à necessidade de retirar todo o intestino grosso;
- Osteoporose, diabetes induzida por corticoide e lesões na coluna cervical.
“Eu tenho esse monte de doença, elas não têm cura. Então eu vou ter que viver com isso. Não dá pra trocar de corpo”, resume, com a franqueza direta que atravessa toda a conversa.
Intestino grosso removido e vida com bolsa: “minha vida é muito boa com a ileo”
A parte mais dramática da história digestiva de Bruna está no intestino. Com o cólon praticamente paralisado, ela chegou a tomar cinco comprimidos diários de bisacodil, usar laxantes osmóticos e soluções retais – sem conseguir evacuar.
Um exame revelou um acúmulo de fezes com dilatação de 10 centímetros, prestes a romper. A opção médica foi radical: retirar todo o intestino grosso.
Bruna pediu ainda para ficar com uma ileostomia definitiva – a bolsa pela qual ela passa a evacuar. O cirurgião cogitava algo “apenas temporário”, mas ela foi categórica:
“Eu não quero viver correndo para o banheiro com diarreia o tempo todo. A bolsa tá aqui, eu tô tranquila. Se eu tenho diarreia, eu vou lá, esvazio, e acabou. Minha vida não acabou, minha vida é muito boa com a íleo.”
Ela lembra o impacto que o relato público de Preta Gil teve na normalização da bolsa de estomia: “Ela mostrou que dá pra viver bem com a bolsinha. Não é o fim do mundo.”
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Erros médicos, autonomia e o direito ao conhecimento
Com anos de internações, Bruna acumula relatos de erro médico que misturam humor, indignação e autocontrole:
- Quimioterapia em dose tripla: um médico interno copiou a prescrição do especialista e transformou uma dose de ciclofosfamida em três dias seguidos. “Quando chegou a segunda bolsa, disseram: ‘você tem que tomar porque está prescrito’. E eu: ‘não, eu não tenho que tomar porque está prescrito. Eu não vou tomar’.”
- Nutrição parenteral dobrada sem avisar: um nutrólogo dobrou a dose da NPT sem conversar com ela, o que a deixaria presa à bomba de infusão por muito mais tempo. Bruna vetou na porta do quarto.
- Erro de dentista como gatilho: após tirar um dente do siso, teve uma alveolite mal tratada, infecção grave que atingiu o osso e exigiu cirurgia extensa. O episódio, diz ela, foi o gatilho para o lúpus se manifestar.
Daí nasce uma convicção:
“O médico não pode ser o único detentor de saber. Os pacientes têm direito a conhecimento – e a medicina não facilita esse acesso.”
Ela faz questão de ler, perguntar, recusar procedimentos quando discorda e reivindicar o próprio corpo como espaço de decisão – postura que, não raro, irrita equipes, mas que literalmente salvou sua vida.
Humor, cremação e a playlist da própria morte
Apesar da lista de diagnósticos, Bruna escolheu o humor como ferramenta de sobrevivência – inclusive para falar da própria morte.
Ela conta que já tem músicas escolhidas para a cremação:
- “Chop Suey!”, do System of a Down – “porque começa com wake up!; se eu não levantar nem assim, com o cara gritando na orelha, é porque eu vou morrer mesmo.”
- “Should I Stay or Should I Go”, do The Clash, brincando com a ambiguidade do momento da partida.
Ao mesmo tempo, ela faz questão de dizer que não está bem o tempo todo:
“No Instagram, as pessoas podem achar que eu estou sempre calma, sempre tranquila, sempre feliz. Não é verdade. Isso aqui é recorte. Tem momento do tipo: ‘fudeu, daqui eu não passo’.”
Quando essa sensação chega, ela diz que já viveu a experiência de aceitação, de pensar: “se eu for agora, eu estou bem, tá tudo certo”.
Testamento vital e a defesa da morte assistida
Bruna redigiu um testamento vital – documento em que registra as decisões que quer que sejam respeitadas se estiver inconsciente em situação irreversível.
Ela não quer:
- Intubação para prolongar artificialmente a vida;
- Traqueostomia;
- Alimentação por sonda em contexto de fim de vida;
- Manobras de ressuscitação em quadro terminal.
“Do mesmo jeito que eu quero ser ativa no meu tratamento, eu tomo decisões também na hora da morte. Não quero viver a qualquer custo.”
Ela defende a legalização do suicídio assistido (que chama de morte assistida) no Brasil, em linha com casos como o do poeta Antônio Cicero, que optou por morrer na Suíça:
“Não é uma luta fúnebre, é sobre dignidade. Quero dignidade para viver doente e para morrer com dignidade. Minha religião é minha, eu não posso usar minha crença para decidir o destino do corpo do outro.”
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Preta Gil, amizade à distância e luto
A relação de Bruna com Preta Gil nasceu nas redes, muito antes do encontro presencial.
Ela ria das canecas cheias de palavrão que a cantora postava, respondia aos stories, até que um dia recebeu em casa um pacote com duas canecas e um bilhete:
“Bruna, sei que as minhas canecas te fazem rir. Agora você vai poder rir com as suas. Beijos, Preta.”
Mais tarde, as duas se encontraram no hospital, depois que Bruna levou para Preta uma ilustração de Obaluaê, orixá ligado à doença e à cura, com o nome da artista escrito atrás.
Quando soube da morte de Preta, Bruna ficou impactada sobretudo pela forma:
“Soube que ela morreu na ambulância. Eu luto muito pela morte digna. Fico pensando: que pena. Ela poderia estar sem dor, acolhida, cercada de quem ama. É possível oferecer isso quando a gente sabe que a pessoa está em fim de vida.”
Política, SUS e a ferida da pandemia
Bruna se define como uma pessoa de esquerda, mas faz questão de dizer que convive com familiares de outras posições políticas “e tá tudo bem” – desde que não haja desumanização.
O limite, para ela, é quando um líder zomba da dor alheia, como ela vê ter acontecido com o então presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19:
“Ele imitava gente com falta de ar em plena pandemia. Isso pega na minha moral. Eu dependo de remédio do SUS. Tem muita gente que, se o SUS falhar, morre. Ele ofendia a existência de muita gente.”
Daí nasce outro eixo da atuação dela: a defesa do SUS, da política pública e de um país onde pessoas com doenças crônicas não precisem “pedir desculpa por existirem”.
Violência doméstica e o trabalho de se reconstruir
Nem só o corpo adoeceu. Bruna conta um período em que viveu um relacionamento marcado por violência psicológica e agressão física.
O ex-companheiro, um estatístico, minava especialmente a escrita dela, justamente enquanto ela fazia mestrado em Linguística:
- Ele reescrevia textos dela, tomando para si elogios de orientadores;
- Criticava roupas, batom, cabelo, chegando a deixá-la sozinha na rua por não aprovar um look;
- Em um surto, arremessou um sofá na direção dela.
“Uma psicanalista me disse: eles esvaziam a gente. A pior dor que eu já senti não se compara à dor daquele período.”
Reconstruir-se desse esvaziamento, ela diz, deu mais trabalho do que enfrentar cirurgias e internações.
Gatos, sapateado, bolo de caneca e a pulsão de vida
Depois de tanto tempo hospitalizada – incluindo períodos de 50 dias internada –, Bruna diz que o capítulo atual da própria vida se chama “Movimento”.
Hoje ela:
- Mora sozinha;
- Cuida de gatos adotados, que chama de grande fonte de pulsão de vida;
- Atende pacientes de fonoaudiologia à distância;
- Faz sapateado como parte da reabilitação motora;
- Integra projetos como o Instituto Cozinha Anami, o Instituto Cauê (inclusão de crianças com deficiência) e o coletivo Eu Decido, que discute cuidados paliativos e direito de morrer;
- Volta ao teatro, ao cinema, às peças que ama;
- E ainda ensina, em rede nacional, a receita de um bolo de fubá vegano de caneca feito no micro-ondas dentro do estúdio do EM3ATOS.
“Quando você está 50 dias num hospital, todos os dias são iguais. Agora, aqui fora, estou podendo fazer coisas que eu jamais imaginaria. Minha vida está em movimento.”
O livro que ainda não foi escrito
Bruna sonha em escrever um livro. O ex-parceiro abusivo deixou cicatrizes profundas justamente na área da escrita, mas ela começa a reconstruir essa confiança – recentemente escreveu o prefácio de um livro sobre cuidados paliativos e recebeu muitos elogios.
“Os livros da Anami me movimentaram. Eu queria escrever algo que fizesse sentido para outras pessoas. Ainda dói olhar para certas partes da minha história, mas eu sei que um dia vou encarar a tela em branco.”
Até lá, Bruna segue fazendo o que o programa propõe já no título: viver em três atos – e em muitos movimentos.
Entre diagnósticos raros, decisões difíceis e uma lucidez cortante sobre vida e morte, ela lembra que não é especial, não é heroína, não é exceção. É “apenas mais uma pessoa vivendo” – mas uma pessoa que insiste em fazer desse viver um ato de resistência, cuidado e dignidade.
